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Vivemos em um mundo plural no qual culturas diversas se encontram, se interpenetram, se fundem, de modo que tradições antigas convivem com novas expressões, nascidas dos encontros culturais. Essa pluralidade, porém, nem sempre é sinônimo de uma convivência harmônica na diversidade. O anseio de afirmar a identidade e o esforço por preservá-la em um meio cada vez mais heterogêneo, faz com que grupos culturais cheguem ao extremo da intolerância diante do outro, com quem divide o mesmo espaço, e abundam as posturas egocêntricas, ou etnocêntricas, que excluem, discriminam, menosprezam o outro, o “diferente”. A religião, enquanto fato social, não está á margem dessa realidade, vivendo um fervilhar constante de encontros, fusões, ressignificações e também conflitos.
No Brasil, o hibridismo religioso merece especial atenção. Desde o período colonial, povos diversos se encontraram no território brasileiro, dando origem a uma cultura tão miscigenada quanto o povo que deles nasceu. Imigrantes, colonizadores e escravos africanos se uniram aos nativos da terra para originar o híbrido “povo brasileiro” (FREIRE, 1977). Essas culturas tiveram papel preponderante na construção da religiosidade brasileira.
O Catolicismo, religião imposta pelos colonizadores, não atingiu completamente o seu objetivo de extinguir as “crenças” dos nativos e dos escravos e acabou, no meio popular, incorporando elementos destas. Assim, o Catolicismo Oficial, controlado e ensinado pela Instituição religiosa, passou a conviver com uma forma híbrida da religião, o chamado “Catolicismo Popular”. E, mais tarde, com uma diversidade de novas expressões religiosas, que se apropriaram de elementos católicos sem, no entanto, serem de fato católicas, tais como as religiões afro-brasileiras.
Estas novas expressões religiosas se sobressaíram em meio ao povo mais que o Catolicismo oficial, cresceram e se espalharam por todo o Brasil. Híbridas por natureza, sofreram ainda transformações de região para região, seguindo a heterogeneidade do território brasileiro, no qual cada região encerra particularidades geográficas, econômicas, sociais e também culturais, embora haja semelhanças devido á raiz comum: a cultura brasileira.
Sobrevivendo vigorosas na religiosidade popular, e transmitidas de geração a geração, essas expressões religiosas chegaram aos dias atuais e, longe de entrar em atrito com o mundo moderno, com ele se familiarizam, pois sua natureza sincrética imprime-lhes uma abertura ao novo que não estranha a tendência à hibridização que o intenso encontro de culturas tem provocado nas sociedades atuais.
Entretanto, sabemos que, ao longo da História, o Catolicismo institucionalizado considerou diabólicas todas as práticas espirituais que não correspondiam aos parâmetros do Cristianismo erudito nem a eles se agregavam. Tal atitude, gestada no meio eclesiástico desde os tempos medievais e disseminada em meio ao povo, foi adotada também pelos cristãos protestantes após a Reforma Religiosa, fazendo com que os costumes e crenças de diversos povos fossem vistos como culto ás trevas e ao “maligno”. Essa postura permaneceu arraigada na mentalidade cristã/católica, fazendo com que ainda hoje, ocorra a demonização do “outro”, do “diferente”. É o que acontece em relação às religiões de matriz africana, e, em muitos aspectos, ao próprio Catolicismo popular. Muitas práticas e crenças do povo são vistas como “coisa do demônio”.
Às divergências de interpretação dos símbolos sagrados acrescenta-se, no caso das religiões de matriz africana, o estigma do elemento negro. Segundo Santos (2002), o africano, além de arrancado de sua pátria, privado de sua liberdade e expropriado de sua cultura e religião, foi historicamente construído sob o estereótipo de constituir uma raça inferior, de ser um elemento degenerado e degenerador na sociedade, símbolo da negatividade, das trevas, do demoníaco, da perversão. O intuito de tal conceito era justificar a escravização dos negros pelos europeus e impedir uma ascensão libertadora dos mesmos. Ainda nos dias atuais observa-se que o racismo gerado desde o período colonial contra os negros permaneceu arraigado na mentalidade do brasileiro, tendo como uma de suas manifestações a assimilação das religiões de matriz africana com práticas demoníacas.
Essa mentalidade fomenta a intolerância religiosa, o que constitui uma contradição em um solo sincrético e em um país que se declara laico, ou seja, aberto democraticamente a todas as confissões religiosas. A Intolerância religiosa brasileira se manifesta, sobretudo, por meio da violência simbólica, através, por exemplo, de pesados ataques verbais de autoridades cristão/católicas contra as religiões de matriz africana e contra as crenças populares, consideradas espiritualidades errôneas, inválidas, inferiores ou demoníacas. A violência simbólica é evidenciada também pelo menosprezo e/ou marginalização sofridos pelos grupos religiosos mencionados, e pela visão negativa da sociedade em relação aos seus adeptos, tornando-os alvo de discriminações, zombarias, caricaturas, quando não tem a sua religiosidade esvaziada de sentido e reduzida a mero folclore.
Não obstante, nas terras do sertão norte-mineiro perdura a herança dos antepassados, que se construíram por meio de suas próprias forças e encontraram na fé um aliado para sobreviver à uma realidade hostil. Nos dias atuais, pensamento mágico-religioso convive com os avanços da modernidade, e entre as muitas crenças e práticas espirituais, perdura no meio popular o ato de benzer: tanto católicos quanto umbandistas recorrem ás orações com os ramos para solucionar problemas orgânicos e espirituais. As benzeções constituem, portanto, um elemento comum ao Catolicismo popular e à Umbanda, o que convida estas religiões ao diálogo e à superação de suas divergências à partir do reconhecimento de sua origem comum no ethos popular sertanejo.
A violência de cunho religioso, seja ela física ou simbólica, constitui uma auto-violência, pois existe entre diversas manifestações religiosas um alto grau de parentesco, quando não uma origem comum, sobretudo se estas são gestadas num mesmo contexto sociocultural, como é o caso do Catolicismo popular e da Umbanda no Sertão norte-mineiro.
Referências
FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1977.
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do “ser negro”: um percurso das idéias que naturalizaram a inferioridade dos negros. – São Paulo : Educ/Fapesp ; Rio de Janeiro : Pallas, 2002.
[1] Acadêmica do 5º período do curso de Ciências da Religião na Universidade Estadual de Montes Claros/Unimontes.
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